Ao longo de nossas idas a campo, seja para realizar as gravações dos CDs, ou mesmo para entrevistar as lideranças para o preenchimento do INRC, percebemos que a tradição é um dos valores mais importantes para os maracatus-nação. A crescente valorização da cultura popular pernambucana e conseqüente conquista de novos espaços por parte desses grupos e até mesmo de outras agremiações são fatores que podem ter contribuído para tal perspectiva.
Não há maracatu-nação que não deseje ser tradicional, todos de certa forma são, mas o que significa ser tradicional? Para alguns ser antigo é sinônimo de tradição, é sinal de que o grupo tem longa história, logo legitimidade para definir suas escolhas. Quem é antigo tem o domínio do saber, pode servir de modelo a outros grupos e dificilmente poderá ser contestado por um grupo mais recente. As nações Leão Coroado com fundação em 1863 e Estrela Brilhante de Igarassu fundado em 1824 são dois grupos que utilizam seu longo tempo de existência para afirmarem sua tradição.
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Estandarte da Nação Estrela Brilhante de Igarassu. Foto reitirada do site:http://blocodepedra.maracatu.org.br/2008/03/06/toadas-da-nacao-estrela-brilhante-de-igarassu/ |
O Leão Coroado tem como exemplo uma loa famosa que expressa claramente seus valores:
“Esse maracatu foi fundado em 1863
Codinome Leão Coroado passado de glória nunca se desfez
É o maracatu mais antigo, pois nenhum museu nunca lhe acolheu
Nós somos de nação germana, semente africana Xangô pai nos deu “
Codinome Leão Coroado passado de glória nunca se desfez
É o maracatu mais antigo, pois nenhum museu nunca lhe acolheu
Nós somos de nação germana, semente africana Xangô pai nos deu “
Os dois grupos também tem como característica marcante a postura avessa às inovações na manifestação tanto em seu batuque, como em personagens da corte e organização. Eles consideram as inovações como uma ameaça à tradição nos maracatus.
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Mestre Luis de França. Foto retirada do site:http://digitalizacao.fundaj.gov.br/fundaj2/modules/busca/listar_projeto.php?cod=29&from=375 |
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Maracatu estrela Brilhante de Igarassu. Foto retirada do site:http://www.igarassu.pe.gov.br/defesacivil/conteudo/143/Maracatu%20Estrela%20Brilhante |
No entanto, outros grupos como a nação Porto Rico (fundado em 1916) e Estrela Brilhante do Recife (fundado em 1910) são mais abertos a inovações em suas diversas esferas, porém também são considerados antigos e por isso acreditam que possuem conhecimento o suficiente e autoridade para definir o que é uma descaracterização da manifestação ou não. Por esta razão suas escolhas também se amparam na tradição.
Caravela santa Maria, símbolo da nação Porto Rico. |
Alfaia da Nação Estrela Brilhante do Recife fazendo alusão a idade do grupo. |
A Nação Porto Rico por exemplo, é conhecida por ter inovado a parte estética dos desfiles dos maracatus-nação, com a introdução de vestidos mais luxuosos, com novos tipos de tecidos e bordados, além da introdução de novas personagens na corte na década de 1980. Já no início dos anos 2000 a referida nação introduziu os atabaques e novos tipos de viradas e convenções em seu baque. Essas “inovações” porém tem o amparo na tradição. De acordo com as lideranças do grupo a introdução do luxo nas personagens da corte era permitido porque corte real sempre foi sinal de brilho e riqueza. Já os atabaques e novas convenções, baseadas em alguns toques provenientes dos xangôs, são consideradas pelo grupo não como algo novo, mas como um resgate do modo como o baque dos maracatus se constituíam antigamente.
Já a Nação Estrela Brilhante do Recife, que também é famosa pela quantidade de variações e convenções dentro de seu baque, afirma que acrescenta esses “novos temperos” ao baque do grupo em apresentações de rua, pertencentes à esfera profana do maracatu. Já na dimensão sagrada, ou seja, em situações como a Noite dos Tambores Silenciosos ou mesmo o desfile do Concurso das Agremiações Carnavalescas, o baque é mais contido, com menos variações, pois a situação pede assim. Deste modo as escolhas do Estrela Brilhante também se amparam na tradição.
Elda e Chacon Viana, rainha e mestre da Nação Porto Rico |
Outro caso muito interessante é o da Nação Encanto da Alegria. O grupo foi fundado recentemente, em 1998 numa articulação que juntou antigos batuqueiros das nações Elefante (de D.Madalena) e Leão Coroado (de Luís de França) mais D. Ivanize Tavares de Lima, Clóvis dos Santos e Antonio Pereira de Souza, o Mestre Toinho, antigo maracatuzeiro já tendo passado pelas nações Cambinda Estrela, Leão Coroado, Elefante e Indiano. Devido ao histórico e intenções de seus líderes e demais maracatuzeiros, a Nação Encanto da Alegria preferiu adquirir uma postura mais conservadora em relação aos instrumentos utilizados no batuque e modos de tocar, possuindo assim uma “sonoridade antiga”, ou seja com menos variações e convenções no baque. Deste modo este maracatu muito novo adquiriu feições de grupo tradicional e antigo, se aproximando dos modos de fazer e se apresentar das nações Leão Coroado e Estrela Brilhante de Igarassu.
Sr. José João Otaviano de Lima, maracatuzeiro da Nação Encanto da Alegria |
Já grupos como as nações Porto Rico e Estrela Brilhante do Recife, apesar da idade, adquirem feições de grupo novo, com o baque repleto de convenções e diversos personagens e coreografias na corte, lembrando que, apesar dessas “feições de grupo novo”, os grupos também são considerados antigos e tradicionais. Os demais maracatus, principalmente os de fundação recente, afirmam sua tradição ora mantendo uma postura conservadora, ou seja, baseando-se nos modos de fazer dos maracatus de antigamente, ora se atendo a religiosidade, ora se legitimando através de relações pessoais com antigos maracatuzeiros ou autoridades religiosas. Existem grupos também que não dão tanto valor à questão da tradição, buscando afirmar sua identidade através de uma postura mais politizada e militante pelos direitos, educação e formação intelectual de seus maracatuzeiros, como é o caso da Nação Cambinda Estrela.
Muro em frente à sede da Nação Cambinda Estrela |
Batuqueiros da Nação Cambinda Estrela |
A partir do que foi exposto, percebemos que os maracatus-nação têm visões díspares acerca do que significa ser tradicional. Ainda assim todos eles são considerados tradicionais. De fato a tradição é uma categoria muitas vezes compreendida como avessa ao novo, ao moderno que entende como coisas sem ancestrais, logo sem posteridade, sinal de desordem. A ordem e a verdade se encontram no antigo, no começo. No entanto a ordem e o imobilismo na tradição não conseguem se manter inalterados. Como afirma o antropólogo Georges Balandier:
“a tradição está dissociada da mera conformidade, da simples continuidade por invariância ou reprodução estrita das formas sociais e culturais; a tradição só age enquanto portadora de um dinamismo que lhe permite a adaptação, dando-lhe a capacidade de tratar o acontecimento e de explorar algumas potencialidades alternativas”. (BALANDIER, 1997, p.67)
Atabaques na sede da Nação Porto Rico. |
A tradição joga com o movimento do modo como lhe convém, portanto ela lida com mudanças sem deixar de ser tradicional. Isso possibilita que os maracatus-nação pernambucanos articulem com a tradição de maneira tão diversa. O dinamismo da categoria é essencial para sua existência.
Ensaio na sede da Nação Estrela Brilhante do Recife |
Finalmente a tradição, por ser algo extremamente valorizado na atualidade, além de trazer legitimidade para os grupos traz também prestígio e logo mais visibilidade e importância no cenário cultural local e nacional. Isso possibilita que os maracatus-nação utilizem seu prestígio para reinvidicar seus direitos e espaço na sociedade mais ampla. Por esta razão a tradição é algo que traz muitos benefícios para os grupos de cultura popular de uma maneira geral, e acima de tudo a tradição tem contribuição fundamental para a construção de identidade dos indivíduos desses grupos, pois lhes fornecem um lugar na história e dão um sentido a sua existência.
Mestre Toinho da Nação Encanto da Alegria |