terça-feira, 5 de outubro de 2010

O que faz de um maracatu um maracatu-nação?

  Dentro desse extenso trabalho de gravações nas nações de maracatu tivemos a oportunidade de conhecer as comunidades onde esses grupos se situam, seus baques e loas, sua religiosidade, suas lideranças e as demais pessoas que fazem o maracatu acontecer. A partir disso observamos a enorme diversidade existente dentro desses grupos e percebemos que apesar dela todos esses grupos são considerados por todos como maracatus-nação. A pergunta que surge é: existe maracatu que não seja “nação”? Primeiramente precisamos diferenciar os maracatus-nação, que trabalham apenas com instrumentos de percussão e são comuns na cidade do Recife e arredores, dos maracatus-rurais ou de baque solto, que utilizam instrumentos de sopro e tem forte presença na zona da mata pernambucana. A partir disso poderíamos pensar que a utilização de instrumentos de percussão seria o ponto que diferenciaria os maracatus-nação dos outros tipos de maracatu mas a realidade é um pouco mais complexa.

Os grupos percussivos
          Existe não só na cidade do Recife e arredores mas também em diversas partes do Brasil e até do exterior grupos compostos por jovens de classe média que tocam a parte percussiva e executam a dança do maracatu. Alguns desses grupos utilizam a definição “maracatu” em seu nome apesar de muitas vezes não se considerarem como maracatus-nação mas sim como maracatus estilizados ou grupos percussivos. De fato muitas características diferenciam esses grupos percussivos dos maracatus-nação. Primeiramente observamos a forma com que esses grupos se apresentam, a maioria deles realiza apenas a parte percussiva da manifestação, ou seja, apresenta apenas o batuque sendo a minoria os grupos que apresentam um bloco de dança e mais raros ainda os que fazem algum tipo de encenação de corte real. Isso por si só já diferencia bastante os maracatus nação dos grupos percussivos.
Encontro de grupos percussivos em Curitiba/PR. Foto: Guilherme Handa

           É possível observar também que as nações geralmente se situam em comunidades afro-descendentes de baixa renda, sendo compostas por pessoas residentes nesses locais, ou seja, pessoas que possuem relações de vizinhança e que compartilham práticas, costumes e visão de mundo semelhantes enquanto que nos grupos percussivos os ensaios ocorrem em locais centrais das cidades sendo os seus componentes em sua maioria jovens brancos de classe média provenientes de diferentes bairros, não havendo assim um vínculo comunitário. O interesse desses jovens de classe média ao participar desses grupos “para-folclóricos” está sobretudo no entretenimento, na batucada, na dança no encontro com os amigos enquanto que nas nações os interesses extrapolam a dimensão do lazer atingindo outras como religiosidade, ancestralidade, tradição, disputa por reconhecimento e espaço na sociedade.

Grupo percussivo em Santos/SP. Foto: Giovana Spina



          A religiosidade talvez seja o traço que mais marca a diferença entre os dois tipos de grupo. Todas as nações de maracatu que visitamos possuía, em maior ou menor grau, algum tipo de laço com as religiões afro-indo-brasileiras, conhecidas em Pernambuco como xangô (culto aos orixás) e jurema (culto aos mestres, caboclos, pretos velhos, exus e pombas-gira). Nos grupos percussivos esse vínculo não existe pois nem os instrumentos nem as bonecas (quando elas existem) recebem qualquer tipo de obrigação religiosa para sair à rua.
          Percebemos então que as diferenças entre maracatus-nação e grupos percussivos são tão marcantes que é inviável considerar as duas manifestações como sendo a mesma coisa. Na visão dos mestres de maracatus-nação tradicionais esses grupos não podem ser definidos como maracatus. Muitos dos jovens que participam dos grupos percussivos reconhecem que o que fazem é apenas uma releitura dos elementos do maracatu-nação mas muitas pessoas que assistem às apresentações desses grupos acreditam que se trata de um maracatu-nação. A espetacularização da cultura popular e apropriação da mesma por outras classes contribui para que essa visão homogeneizante das manifestações populares ocorra por parte de turistas e demais interessados no assunto. Muitos mestres se preocupam com tal homogeneização pois muitas vezes por possuírem mais recursos e rede de contatos os grupos percussivos acabam disputando espaço no mercado cultural com os maracatus-nação. Alguns mestres também vêem os grupos percussivos como uma descaracterização do modelo autêntico de maracatu, sendo assim uma ameaça a tradição.
Maracatu Nação Encanto da Alegria em arrasto na comunidade da Mangabeira, Zona Norte do Recife.

A diversidade dos maracatus-nação
          Perceber as diferenças entre maracatus-nação, maracatus-rurais e grupos percussivos não esgota a questão sobre o que faz de um maracatu um maracatu-nação. Esse “modelo autêntico” de maracatu-nação dá margem para muita diversidade entre os grupos considerados como legítimas nações. Podemos tomar como ponto de partida a religiosidade nos grupos. Em alguns deles a rainha do maracatu é uma Ialorixá e a sede do grupo é também um terreiro sendo a maioria dos maracatuzeiros filhos da casa. Em outros casos a rainha é filha de santo de outro terreiro que faz as obrigações do maracatu, terreiro este que não sedia a nação sendo os maracatuzeiros filhos de terreiros diversos ou pertencentes a outras religiões. Existe o caso ainda onde a rainha sequer pertence às religiões afro-indo-brasileiras sendo que a ligação de sua nação com a religiosidade se dá apenas na obrigação oferecida às calungas. A vertente da religiosidade afro-indo-brasileira ao qual o maracatu se vincula também é variável; algumas nações tem ligação apenas com o xangô, outras com o xangô e a jurema (visto que tem como padrinhos e madrinhas mestres e mestras) e ainda as que tem vínculo somente com a jurema. A dimensão do sagrado e as interdições religiosas também diferenciam as nações. Algumas atribuem sacralidade aos tambores não permitindo certos comportamentos com relação a eles ou impedindo que mulheres participem do batuque, enquanto outras nações não vêem sacralidade alguma nos tambores compreendendo-os como pertencentes à esfera profana da manifestação e sendo livres de qualquer tipo de interdição religiosa.
Calungas do Maracatu Nação Porto Rico na obrigação realizada antes do Carnaval.


Símbolo do Maracatu Nação Gato Preto, o animal representa um Exu.


          A questão da tradição é mais um fator que diferencia os grupos. A maioria se diz defensor da tradição e avesso a certas inovações mas o modo como esses grupos entendem o que é ser tradicional varia. Ser antigo é um valor muito importante para alguns grupos mas existem grupos considerados recentes que adotam um modelo de maracatu por vezes considerado antigo e tradicional enquanto grupos mais velhos adotaram uma série de inovações. Essas inovações não se limitam a adoção de certos instrumentos considerados como exteriores a manifestação mas também na estrutura do baque que pode ser mais repetitiva ou repleta de variações e convenções. Ainda que adotem essas inovações, as nações não se consideram menos tradicionais, as justificativas de suas escolhas são sempre amparadas na tradição, o que pode ou não pode ser modificado na manifestação, o que caracteriza ou não uma deturpação do modelo autêntico de maracatu-nação varia de grupo para grupo.
Maracatu Nação Almirante do Forte, comunidade do Bongi, Recife.

          Se a religiosidade é operada de maneira distinta entre os grupos e a tradição também qual o limite para se definir o que é maracatu-nação? A resposta para tal questão é muito complexa, talvez o elo que una esses grupos numa mesma categoria seja a importância que a religiosidade ou tradição tenha dentro deles ou ainda a pertença a uma comunidade que possibilita uma série de relações que extrapolam a dimensão do batuque pelo simples entretenimento. Toda essa reflexão atiçou nossa curiosidade e vontade de aprofundamento no assunto, por isso a questão do que faz um maracatu ser maracatu-nação já está no roteiro de perguntas a serem feitas para nossos maracatuzeiros entrevistados!


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